"A palavra é o meu domínio sobre o mundo". Clarice Lispector

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

AS CONVERSAS NO WHATSAPP COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA MULTIRREFERENCIAL COM OS COTIDIANOS


Rosana Sales de Jesus (autor)
UERJ-FEBF
Rosemary dos Santos (orientadora)
UERJ-FEBF


1. À GUISA DE INTRODUÇÂO... ENTRELAÇANDO OS FIOS DA PESQUISA

O presente estudo é fruto da pesquisa de mestrado em andamento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF), cujo título é “Os sentidos da escola em conversas docentes no WhatsApp[1]: uma ciberpesquisa multirreferencial com os cotidianos”. O objetivo desta pesquisa é promover algumas reflexões sobre os usos das conversas no WhatsApp como dispositivo de pesquisa acadêmica e como elas podem contribuir para o exercício da formação continuada dos docentes e para uma prática pedagógica contextualizada com a cultura contemporânea.
O campo da pesquisa é uma escola pública da periferia do Rio de Janeiro[1] onde a pesquisadora e dez professores participam do grupo do WhatsApp. Inicialmente criada pela gestora da escola para a comunicação entre direção e professores, essa finalidade foi logo ressignificada pelos docentes: as conversas aligeiradas que aconteciam durante o horário escolar estenderam-se para o grupo do WhatsApp da escola. É nessa ambiência, possibilitada pelo WhatsApp, em que opiniões, realizações, angústias, alegrias, sonhos se imbricam, e temas diversos, como formação, atos de currículo, estigma, violência, e, em especial, educação  são discutidos, que emerge um dos dilemas desta pesquisa: a busca de uma alternativa para que esses saberes e fazeres que são compartilhados  nessas conversas não caiam no vazio e possam reverberar  na prática cotidiana da escola, tendo em vista a melhoria do processo educativo.

Para isso, na realização desta pesquisa, inspiramo-nos na abordagem multirreferencial com os cotidianos para refletirmos sobre as nossas práticas cotidianas, considerando que uma pesquisa não se reduz ao ato de coletar, selecionar e categorizar os dados, mas se tornam significativas quando produzidas com os docentespraticantes[2] (CERTEAU, 2009). Assim, este estudo justifica-se pela potência dos aplicativos na atualidade. Entendemos que trazer as conversas do aplicativo como dispositivo[3] de pesquisa é pensar sobre a diversidade de histórias que emergem no cotidiano da escola e o quanto as conversas se constituem como modos de viver.


2. TECENDO UM CAMINHAR: OS MOVIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA MULTIRREFERENCIAL COM OS COTIDIANOS

A pertinência desta pesquisa inscreveu-se num amplo movimento da perspectiva epistemológica da multirreferencialidade com os cotidianos, pois pensamos que seja "fundamental vivenciar uma metodologia aberta às emergências, ao novo, ao possível, ao acontecimento” (SANTOS, 2005, 140), que seja participativa, implicada, vivenciada em diálogo práticateoriaprática, construída no movimento da pesquisa, ancorada numa leitura plural, desvelando insatisfações, ausências, desconsertos, dificuldades que são próprias da realização de pesquisas com seres humanos. Desse modo, fundamentados no paradigma da complexidade (MORIN, 2006), buscamos bricolar os fundamentos teóricos da abordagem multirreferencial (ARDOINO, 1998: MACEDO, 2012), que valoriza o diálogo entre saberes científicos e saberes comuns, com a abordagem da pesquisa com os cotidianos (CERTEAU, 2009: ALVES, 2008), que enfatiza as práticas pedagógicas.
O contexto da pesquisa foi o grupo de WhatsApp formado por  docentes de uma escola pública do município do Rio de Janeiro e acionado pela diretora da escola. Com o dispositivo conversas no grupo do WhatsApp, produzimos novos conhecimentos, tecemos o caminhar da pesquisa, levando em conta a experiência autorizante do pesquisador e dos praticantes da pesquisa(SANTOS, 2015). E como traduzir em palavras o que os praticantes colocam de forma tão generosa sem deixar de lado os sentidos expressos nessas conversas, sem usá-las friamente, como dados prontos a serem analisados, separados e categorizados de acordo com o modo hegemônico de se fazer ciência? É preciso experimentar outras formas de investigação científica, buscando compreender a rede de saberes presentes nas imagens, sons, silêncios e falas, ou seja, a imprevisibilidade de trazer as conversas como dispositivo de pesquisa. Trazendo uma nova maneira de escrever, que se expresse em múltiplas linguagens (dos áudios, vídeos, memes, emojis, links) tecidas coletivamente no movimento de "uma escritafala, uma falaescrita ou uma falaescritafala" (ALVES, p. 31, 2008), emergentes na atual dinâmica cibercultural.   
Desse modo, a opção pela abordagem epistemológica multirreferencial com os cotidianos nos permite conversar com os professores e não sobre eles, olhar as faltas, dialogar com as certezas e incertezas, compreendendo, de modo plural, os processos formativos em que estamos inseridos. São os dados que emergem das conversas que nos move a quebrar a hegemonia de fazer a investigação a partir de uma abordagem metodológica prescritiva, dura, controlável, ancorada em perguntas e respostas frias sobre os fazeres docentes nos espaçostempos da escola.
No diálogo entre teoria e empiria, tecemos caminhos para interpretar os dados que emergem dessas conversas. Para Santos (2015, p. 32), "a narrativa dos praticantes culturais e os demais recursos constitui recursos extremamente férteis apresentados no corpo do texto analítico e como fonte de densa interpretação". Por isso pesquisamos com, em parceria, no entrelaçar dos fios tecidos por nós e com os outros. Inventando e recriando caminhos tecidos no coletivo e buscando compreender de forma plural as "maneiras de fazer" (CERTEAU, 2009) desses praticantes.

3. CONVERSA COM OS PROFESSORES: NOTAS DA PESQUISA

01 de fevereiro de 2017- grupo do WhatsApp
Rosana: Boa noite, queridos! Entrei no site da MultiRio e descobri que na página principal há o projeto " Não deixe o mosquito pegar você de surpresa" com vídeos, áudios, jogos e textos da coletânea Detona Aedes.
emojis mamisFlavinha: Q bacana!
Rosana: Acho que vou escrever o roteiro de uma peça                                                                               
Claudia:  #peçacomaRosana  #euapoio
Eu vou ensinar a fazer o repelente c álcool, óleo de amêndoas e cravo! Depois vamos distribuir a receita e amostra grátis (1502).
emojis mamis  
Flavinha: Fede         (mas é bom!)
emoji_olhos_coracao                  
Rosana: Oba! Vou querer tb!
Giselle: Outra dica: comer inhame! Ele deixa um cheiro na pele que repele o mosquito!
E para as crianças, podemos fazer Danoninho de inhame. É uma delícia!
E dá para congelar pra fazer sorvete.
Rosana: Danoninho de inhame? Quero todas as receitas!


A professora Rosana em visita ao site da MultiRio[4] descobriu uma série de produções voltadas ao combate à dengue e compartilhou os achados no grupo do WhatsApp: "Entrei no site da MultiRio e descobri que na página principal há o projeto 'Não deixe o mosquito pegar você de surpresa' com vídeos, áudios, jogos e textos da coletânea Detona Aedes." Essa troca discursiva que observamos poderia ter acontecido em qualquer espaço físico da escola, mas com o uso do dispositivo WhatsApp, os professores que acessaram o grupo, em qualquer espaçotempo, puderam participar  da conversa trazendo suas itinerâncias de vida e formação.
O contexto dos relatos das práticas em sala de aula surgiu como uma das noções subsunçoras[5]·. Compreendemos que a fala da docente Rosana traz uma intencionalidade, a possibilidade do encontro, uma porta que se abre para o início da conversa, na qual as professoras puderam visitar o site, planejaram seus fazeres nos cotidianos da escola e trouxeram uma pluralidade de ideias a partir dos saberes que emergiram dessa prática dialógica, que também demarca o contexto em que se insere esta pesquisa: a cibercultura (SANTOS, 2005).  
Concordamos com Santos (2015, p. 28), que "um dispositivo de pesquisa e formação nada mais é do que uma política de sentidos à disposição das proposições da pesquisa, das vivências, representações, imaginários, histórias e cotidianos inter-relacionados e contextualizados socialmente" e, nesse sentido, entendemos que as conversas coletivas propiciam o pensar sobre a escola, o local que está inserida, como é vista pelo olhar do outro - os de fora - e como é vivida pelas pessoas que habitam o espaço escolar - os de dentro. Essas negociações de sentido nos remetem a dizer que as conversas cotidianas são elementos potentes para pensarmos os saberesfazeres dos docentes nos diversos ambientes formativos e o potencial formativo dos aplicativos de conversa na atual cena sociotécnica.

4. BREVES CONSIDERAÇÕES
Pesquisar com os professores e não sobre eles implica perceber o valor das subjetividades e o inevitável inacabamento do ser humano que, o tempo todo, se constitui a partir da relação com o outro. As trocas, os diálogos, a multiplicidade de vozes e olhares são responsáveis por construir acabamentos provisórios, contornos dados a partir do olhar do outro que nos confere uma percepção de um lugar que não alcançamos sozinhos.
Por fim, para compreendermos como os praticantes se constituem ao longo do percurso de construção dessa pesquisa, procuramos fugir das prescrições com as quais fomos formados e, sobretudo, buscamos as diferentes vozes, os pontos de vista particulares, os diferentes contextos para compreendermos as singularidades, as faltas, as dúvidas e imprevisibilidades, compreendendo, de modo plural, os processos formativos em que estamos inseridos e que são hoje fortemente influenciados pelo uso do digital em rede.    

5. REFERÊNCIAS
ALVES, N.; OLIVEIRA, I. B. Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre redes de saberes. Petrópolis: DP et al, 2008.
ARDOINO, J. Nota a propósito das relações entre a abordagem multirreferencial e a análise institucional (história ou histórias). In: BARBOSA, Joaquim Gonçalves (coord.); Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: UFSCar, 1998.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Pertópolis, RJ: Vozes, 2009.
MACEDO, R. S. A etnopesquisa implicada: pertencimento, criação de saberes e afirmação. Brasília: Liber Livro, 2012.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. — Porto Alegre: Sulina, 2006.
SANTOS, E. Educação online: cibercultura e pesquisa-formação na prática docente. Tese de doutorado. Salvador, FACED-UFBA, 2005.
SANTOS, R. Formação de Formadores e Educação Superior na cibercultura: itinerâncias de Grupos de Pesquisa no Facebook. Rio de Janeiro, 2015. Tese de doutorado- Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.



[1] Por questões éticas, optamos por preservar a identidade da instituição e das pessoas envolvidas na pesquisa.  
[2] Esse modo de escrever unindo as palavras, se mostrou necessário para buscar superar a dicotomização herdada do período no qual se “construiu” a ciência moderna, e é uma das marcas registradas na obra da Nilda Alves.
[3] Optamos utilizar a noção de dispositivo de Ardoino(1998), que diz que dispositivos são todos os meios intelectuais e/ ou materiais que o pesquisador dispõe ou cria para cocriar seus dados.

[4] Criada em 18 de outubro de 1993, a MultiRio – Empresa Municipal de Multimeios, vinculada à Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, vem referendando sua atuação na convergência cidade-educação. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/>.

[5] Noção subsunçora: parte que é significativa e tem o propósito de distinguir o objeto, os acontecimentos, os praticantes culturais, as ações ou outros aspectos.(SANTOS, 2015, p.31)




[1] O WhatsApp é um aplicativo que utiliza a conexão da internet para enviar mensagens de texto, vídeos, fotos, arquivos, em um mesmo dispositivo. Nele as conversas podem ser individuais ou em grupo e somos capazes de compartilhar mensagens, fotos, vídeos com até 256 pessoas ao mesmo tempo.

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